ou
[ lidando com pessoas inteligentes ]
ou
[ por que a CPMF não vai pra saúde ]
Talvez o título deste post seja agressivo demais. Mas é o que sinto quando entro num hospital público e preciso lidar com médicos, principalmente com recém formados. Normalmente, são profissionais completamente despreparados para lidar com pessoas. Lidar com pessoas é uma arte que não se aprende na faculdade. Alguns podem dizer que é um dom lidar bem com pessoas. Eu acho que lidar bem com pessoas é algo que se desenvolve com o tempo. Se um professor não aprende isso rapidamente, corre um sério risco profissional. O médico, não. O médico que trabalha no SUS, especialmente o médico-residente, acha que todos os seus pacientes, e os familiares destes, são pessoas ingênuas. Tenho certeza de que alguns acham que são pessoas burras, mesmo.
Minha mãe tem uma doença degenerativa há alguns anos. Quando a doença se manifestou, nos obrigaram a conseguir receitas do SUS para que ela pudesse receber remédios caríssimos que são comprados e forncecidos à população pela Farmácia de Medicamentos Especiais do governo do estado. Sem essas receitas, ou ela não receberia os remédios ou teríamos de gastar 3 mil reais por semana. Ali começou o inferno. (É claro que o SUS é um inferno pra qualquer pessoa, mas acho que a situação se agrava quando alguém que tem condições de pagar um plano de saúde precisa recorrer ao SUS.) Tivemos (eu e o restante de minha família) de começar a lidar com gente ignorante, despreparada, descontente, mal resolvida sexualmente... Pessoas que estranham quando recebem um bom dia, boa tarde, boa noite.
Retirar os remédios na Farmácia do Estado não era o pior, apesar de levar horas toda vez que isso era necessário. Atualmente, ela não precisa mais desses remédios (o que é bom, por um lado). O pior sempre foi e continua sendo lidar com médicos de hospitais públicos. 99,9% dos pacientes do SUS são pessoas que não têm condições de pagar um plano de saúde (fonte: Marcelo Frizon) . São pessoas com pouca instrução, sem nenhuma formação intelectual. Mas eles esquecem, ou talvez não saibam, que existe o (maldito) 0,1% dos usuários do SUS que aprendeu mais do que ler e escrever o próprio nome (problema, aliás, que também atinge alguns médicos altamente graduados e experientes, que normalmente não trabalham mais no SUS).
Lembro-me de algumas consultas da minha mãe em que o médico ficava impressionado quando eu entrava no consultório lendo um livro e empurrando a cadeira de rodas. Para mim, as habituais três horas que eu precisava esperar para que ela fosse atendida não eram um problema. Eu ficava lendo, tranqüilo. Para minha mãe, claro, era um martírio esse tempo...
O médico do SUS nivela todas as pessoas por baixo. Quando aparece alguém diferente, ele fica impressionado. E eu fico indignado com isso porque eu já estudei muito mais do que a maioria desses médicos e também lido com pessoas, pessoas com instrução variada, de diferentes raças, experiências, classes sociais, opções sexuais... E procuro respeitar a todos da mesma forma. Acho que consigo. Houve uma época em que eu era extremamente arrogante. Acho que minha prepotência está sob controle. Mas não com relação a médicos do SUS...
Na última vez em que minha mãe esteve internada, ela teve de esperar três dias numa emergência lotada, em que não havia espaço para uma mosca circular. No segundo dia, fui até a enfermeira-chefe perguntar como ela estava, e ela disse que eu devia falar com o médico, que só passava por lá às 10h da manhã. "Nesse horário, eu trabalho. Não tenho como falar com ele". E ela: "então não posso lhe ajudar". "Quer dizer que se ela estiver morrendo, você não sabe me informar e, muito menos, cuidará para nada de grave aconteça?" É possível que uma pessoa com pouca instrução não tivesse capacidade para questionar algo assim. Ou talvez lhe faltasse coragem. O fato é que o enfrentamento deu resultado, ainda que mínimo. Ela resolveu pegar a planilha com as informações dos pacientes e me passou as anotações sobre o quadro clínico da minha mãe. Precisava de enfrentamento?
Depois que ela saiu da emergência e foi para um quarto, aí sim, tive de lidar com médicos-residentes. Especificamente, duas médicas. A primeira perguntou o que eu e meu irmão fazíamos. Estranhou que éramos inteligentes, bem-sucedidos, que sabíamos nos expressas e que não éramos evangélicos. Depois disso, nos alertou que a situação da minha mãe era grave e que nós deveríamos nos preparar. Ela deve ter contato tudo isso pra segunda quando lhe passou o caso. Esta soube lidar melhor com a situação, embora tenha feito umas bobagens, a meu ver.
Talvez seja porque eu sei lidar com pessoas, mas eu não questionaria um médico. Ele entende de saúde, eu entendo de literatura. Se ele me diz que minha mãe vai morrer, eu acredito. Ou melhor, acreditava. É claro que todo mundo vai morrer, essa é a nossa única certeza, mas comecei a ter mais receio de médicos, muito especialmente os do SUS. Às vezes acho que entendo mais de saúde do que eles. E passei a sempre perder a compostura quando eles ficam impressionados porque leio livros.
Mas o que me deixa mais triste nisso tudo é que se a CPMF fosse utilizada para aquilo a que foi idealizada os médicos do SUS teriam de lidar, assim como eu, com todo tipo de pessoa, e teriam de respeitar todas as pessoas da mesma forma. 40 bilhões de reais por ano poderiam revolucionar a saúde brasileira. Ninguém mais precisaria de plano de saúde.
A CMPF existe há cerca de dez anos. Nesse tempo, quantos novos hospitais foram inaugurados? Quanto dinheiro foi gasto com isso? Quanto se gastou para remunerar corretamente os profissionais da saúde? Quanto se gastou para se especializar os médicos, cientificamente e psicologicamente? Quanto se gastou para salvar vidas?
A CPMF não é um imposto destinado à saúde porque logicamente há interesses políticos por trás disso. Planos de saúde, hospitais privados e médicos particulares iriam à falência se esse dinheiro todo fosse gasto corretamente. Talvez eu esteja sendo utópico demais, para alguns. Mas se isso existe na Suíça, por que não poderia existir no Brasil? Se existe em algum lugar do mundo um país em que não há plano de saúde, minhas idéias não têm nada de utopia quando existe um imposto como a CPMF que arrecada anualmente esse montante.
Ok, acho que esse post ficou muito recheado de advérbios terminados em -mente e um pouco piegas. Mas tudo bem.
(É claro que existem os médicos do SUS que não agem dessa forma que descrevi. São poucos, mas existem. Mas, se você é médido e ficou irritado com tudo isso que escrevi, ou você concordou porque conhece colegas que agem dessas forma ou você mesmo age dessa forma. O chapéu lhe serviu... E como ficou bonito!)