Hamlet é a peça mais famosa de William Shakespeare, mas isso não impede que a montagem dirigida por Luciano Alabarse seja a primeira com texto integral realizada no Rio Grande do Sul. A peça fez sua estréia no início de julho no Theatro São Pedro e agora retornou no palco do Renascença. Com ingressos a R$ 20,00 (e 50% de desconto para estudantes, professores e maiores de 60 anos), ninguém pode deixar de assisti-la.
O texto tem tradução de Lawrence Flores Pereira, professor da UFSM, e dramaturgia de Kathrin Rosenfield, professora da UFRGS. É provável que Alabarse teria conseguido o mesmo resultado sem esse apoio, por mais importante que tenha sido, mas talvez isso levasse a peça a gestar por mais tempo. De qualquer forma, quem assiste à produção tem a nítida noção de que se existissem mais nove diretores como Luciano Alabarse no teatro gaúcho, seríamos referência na área para todo país.
O problema do teatro gaúcho é que os atores e diretores acreditam que só conseguirão sobreviver montando espetáculos infantis ou comédias non-sense e o tradicional pastelão. Alabarse provou, com a curta tempoarada no São Pedro, que não é necessário ser engraçado para ter a casa cheia. Eu mesmo tentei assitir à estréia, mas quando cheguei para comprar o ingresso era tarde demais.
Não estou dizendo que não é bom existirem comédias. O problema aqui no Rio Grande do Sul é que elas dominam o teatro gaúcho, e o pior é que são todas parecidas, recheadas de clichês que todos já vimos em seriados como Seinfeld, Sex and the city e Friends, ou mesmo n'A Grande Família, n'Os Normais e em Sexo Frágil. Até os títulos dessas peças remetem a essas séries: Manual Prático da Mulher Moderna, Se meu ponto G falasse, Homens de perto... As montagens não são ruins, os atores são alguns dos melhores que fazem teatro por aqui, mas faltam no teatro gaúcho diretores que ousem, que criem obras consistentes, que montem clássicos e peças modernas (mas sem essa história de minimalismo ou pós-modernidade, por favor).
Alabarse não é o único a desenvolver um teatro de qualidade. Temos Ramiro Silveira, Roberto Oliveira, Patrícia Fagundes, entre outros poucos. Mas a direção executada em Hamlet é a melhor dos últimos anos. A peça conta com mais de 20 atores, e vários deles participam da orquestra de panelas que executa a trilha sonora ao vivo, remetendo à música popular da época em que a peça foi escrita (entre 1600 e 1602 e impressa pela primeira vez em 1603). Cada detalhe da montagem parece ter sido minuciosamente trabalhado, desde um simples gesto de um personagem coadjuvante até o cenário limpo, sem cortinas, que permite ao público visualizar a preparação de cada ator antes de entrar em cena.
Além da ótima direção, os atores captaram muito bem a alma de cada personagem da tragédia. Ida Celina transmite exemplarmente as dúvidas da Rainha Gertrudes, Carlos Cunha Filho encarna um Rei Claudio cheio de ironia e perturbações, José Baldissera é um Polônio patético, engraçado, mas também triste, tudo na medida certa. Mas as grandes atuações ficam mesmo para Evandro Soldatelli (na foto acima) e Ekin, que vivem Hamlet e Ofélia, respectivamente. O pudor, no início, e a loucura, depois, são os elementos básicos de Ofélia, reconhecidos por Ekin com maestria. Não é à toa que é um dos personagens mais difíceis de Shakespeare, considerado um enigma por centenas de atores, diretores e dramaturgos. E Soldatelli é um Hamlet debochado, irônico, louco, desesperado. Sua interpretação acompanha de maneira exata os altos e baixos do príncipe da Dinamarca. Mais do que um desafio, Soldatelli parece ter recebido a proposta de interpretá-lo como um presente.
Mas presente mesmo é o que esta montagem oferece ao público. Assistindo a uma boa encenação de uma peça cheia de traições, mortes e reviravoltas, é inevitável associá-la ao que estamos presenciando nos noticiários. Hamlet nos ajuda a refletir sobre a situação política do país e do mundo. Só nos resta esperar que mais diretores tenham coragem e ousadia para montar mais Shakespeare, mas também Beckett, Ibsen, Nelson Rodrigues...
(E não se esqueçam, a temporada de Hamlet, que tem quase três horas de duração com um intervalo de dez minutos, vai até o dia 27 de agosto, no Renascença. Sextas e Sábados às 21h, e Domingos às 18h. O Renascença tem estacionamento próprio. Não percam!)
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